Quando me descobri grávida eu estava começando a dar aulas de inglês para crianças de 4 a 6 anos. Após anos dando aulas para adolescentes e adultos, todos os dias eu enfrentava o novo desafio de me reunir com aqueles pequenos e de me tornar de alguma forma interessante para eles. Não foi fácil! Eu chorei por diversas vezes me dizendo que eu nunca iria conseguir dar aulas para crianças e que deveria desistir.
Então eu decidi fazer o que deveria ter feito antes de enfrentar o desafio: estudar. Ler sobre infância. Sobre o que diziam as pessoas que já faziam o que eu estava tentando fazer. Foi a melhor coisa que fiz. Conhecimento compartilhado é um presente dos tempos para nós. Pus-me então a aprender canções infantis em inglês e a desenvolver jogos com elas. Foi um começo. As crianças começaram a prestar atenção em mim.
Mas faltava algo. O poder de acolhimento e de vínculo que as músicas e as brincadeiras proporcionaram aos nossos encontros foi fantástico. Mas algo precisava complementar tudo isso. Eu precisava de algo que os fizesse desejar estar ali comigo e ainda os instigar a construir comigo os encontros. Foi quando eu comecei a fazer leitura de histórias. As histórias eram usadas de forma pedagógica, para ensinar inglês, mas a magia mesmo não aconteceu por esse viés. Aconteceu no ouvir, no observar, no compartilhar, no silêncio quebrado, no silêncio mantido, na roda de crianças sentadinha no chão esperando o momento em que elas iriam viajar comigo. Dei-me conta de que o que estávamos construindo naqueles encontros era vínculo, afeto, memórias, linguagens.
A minha filha surgiu em meio a isso tudo. Às minhas descobertas do mundo infantil. Ainda no forninho, ela frequentava todas a aulas comigo e ouvia todas as historinhas. Ouvia-me ler meus livros também. Depois que engravidei passei a ler em voz alta muitas vezes. Além disso, na escola, ela ouvia as pequenas vozes que ecoavam do mundo aqui fora; que participavam e sorriam com a leitura, com as músicas…
Aos poucos eu fui me apaixonando pela literatura para crianças. Não a ponto de me tornar especialista, estou longe disso, mas a ponto de adotá-la como companhia perfeita. Durante a gravidez eu li bastante meus livros porque achava que não iria ter tempo de os ler quando o bebê chegasse. Como de fato aconteceu. A bebê chegou e as leituras se voltaram para ela. Alternávamos eu e o pai na hora da história. Foram pouquíssimas as noites em que ela dormiu sem ouvir história. Sem que lêssemos um livro para ela. Sem que dedicássemos esse tempo para estarmos juntos.
Os livros aos poucos foram se incorporando em nossa rotina e faziam parte de quase tudo. Hora do almoço, hora da brincadeira, hora do piquenique no parque, hora do pediatra, hora do pipi… Para onde íamos levávamos livros. Eles estavam em todo lugar. No quarto, no chão, em cima da cama…ao alcance de todos. Até hoje é assim.
Eram livros brinquedos, livros musicais, livros de pano, livros duros, livros de feltro, livros livros. Eu não tinha como não tenho intenção de cobrar de minha filha que ela se torne uma leitora voraz. Eu não quero criar expectativas que possam enquadrar minha filha em qualquer tipo de coisa que não seja da vontade dela. Talvez ela prefira tocar um instrumento, pintar, dançar, praticar um esporte, ver filmes ou acompanhar seriados. Mas eu parto do princípio de que nada se faz bem feito sem leitura. Sem leitura de mundo, sem leitura de livros. Um bom esportista vai dedicar algum tempo à leitura, um pintor idem, um instrumentista, musicista, produtor de filmes, advogado, médico mais ainda. Penso que não ler não é uma opção, é quase mesmo uma autopunição. É esquecer-se de si num quarto escuro sem brinquedos, sem livros. Por isso eu leio e desejo a leitura.
Eu sou muito entusiasta das bibliotecas públicas, dos livros em todos os lugares, a preços baixos, de graça. Bibliotecas que promovam além da leitura: encontros. Eu aprendi com as crianças que a magia da leitura, da literatura, está no compartilhamento, na escuta, na fala, no silêncio e no barulho que a leitura provoca em nossas mentes e que alcança nossas ações, nosso contato com a realidade.
O que eu ganhei com a literatura infantil foi muito mais do que eu podia desejar. Com meus alunos eu ganhei memorias incríveis, aprendizados importantes. Com minha filha eu desfruto ainda de conversas memoráveis que só as crianças podem nos proporcionar. Desfruto de afeto, de tempo junto, de acolhimento, de um salto para fora da página que vai até a lua e volta.
Hoje, em 2022, já são seis anos de leitura compartilhada aqui em casa. Ainda hoje ela pede por isso. Expande isso para ilustrações de histórias, para suas historinhas que ela mesma conta e escreve. Tem feito questão de ser ela a leitora e eu a ouvinte. Se tivermos sorte, terei uma filha leitora que não se contentará em guardar seus livros e suas leituras trancados em armários. Se tivermos sorte ela vai semear essas leituras em outros corações.
Entendo que as vivências não são iguais e nem os desafios os mesmos. Há quem possa ter livros ao alcance e há quem não tenha sequer tocado em um ainda. Há quem jamais tenha lido um livro por inteiro. As infâncias são muitas. Aliás quando colocamos infâncias assim no plural é simplesmente para dizer que elas são diversas. Mas a infância no singular nos lembra que ela existe para todos e deve ser respeitada. Parte do nosso respeito pela infância é oferecer livros, mas não só isso. Parte de nosso respeito pela infância e oferecer tempo junto e de qualidade. Mesmo que seja pouco o tempo.
Aprender a ler e escrever começam muito antes de tocarmos um livro. Mas quando os tocamos damos nossos primeiros saltos imaginários. *Escolher um livro que todos indicam, que todos estão lendo ou que parece ser mais inteligente ou outra coisa qualquer nem deve ser o objetivo. Um livro em formato tradicional de papel para começar é um livro. Pequeno, grande, duro, mole, colorido, preto e branco, numa folha só… é um livro. O fato de a criança poder explorar seu formato, olhar para o que tem nas páginas, virar, revirar, ouvir o que se conta é a primeira experiência do livro. Esse contato compartilhado conosco cria memórias e vínculos para toda uma vida, além de acionar todo um mecanismo corporal de apreensão do mundo.
Se eu não tivesse lido com minha filha desde muito cedo eu não sei se hoje ela gostaria de leitura; de ter um tempo de silêncio para ela; de dar uma pausa na bagunça dos brinquedos da sala para investir nas bagunças dos livros que se espalham no sofá, na cama, nos tapetes por aqui. Não sei se ela teria aprendido a ler com a mesma facilidade com que faz hoje. Não sei também se escreveria desde os 5 anos suas palavras preferidas. A única coisa que sei por certo é que teríamos perdido doces momentos juntas rebolando ideias, respondendo perguntas, sorrindo e aprendendo coisas novas de lugares distantes, conhecendo pessoas as mais diferentes da gente. Por muitas vezes sem sequer sair do lugar.
Um dia nós pensamos que estamos trazendo a literatura para a criança e outro dia nos damos conta de que é a literatura que está nos trazendo para perto delas e nos envolvendo com laços. O livro por si só não salva ninguém. Já a experiência das leituras, tenho cá com meu botões que sim.
*A escolha certa vem com a consistência, insistência do ato. Quanto mais se lê de tudo um pouco, mas criteriosos vamos nos tornando. Aqui eu falo da leitura com a criança.
P.S: texto escrito em 2022 a pedido de Adriana Costa para colaborar com seu trabalho na área de literatura.